Repito e repito que o nome do protagonista de Navios Iluminados, José Severino de Jesus, não foi dado à toa pelo autor do romance, o médico Ranulfo Prata. É todo um calvário o que ele sofre em Santos, desde o sofrimento mental por já estar endividado antes mesmo de conseguir uma vaga na Companhia Docas de Santos (CDS) até o primeiro acidente nas oficinas que o deixa com uma “chaga” no braço (episódio 3: Nas oficinas das Docas), o peso das cargas na estiva e os sintomas da tuberculose (episódio 8: A tuberculose), sem contar a própria tragédia social das submoradias no bairro portuário do Macuco, a migração forçada para se fugir da seca e todas uma configuração social de exploração do trabalhador.
Já afastado do trabalho, sem forças devido à tuberculose e após ter se despedido do irmão que havia acabado de chegar do Norte e do amigo Felício (ah, essa tensão entre o sofrimento de Jesus e e a vida leve de Felício), nos deparamos com Severino na bela e triste cena final do livro, em que uma maquete de barco — o Esperança — o guia em seu leito de morte.
A imagem do episódio

Pintado somente três anos após a publicação de Navios Iluminados, este quadro da norte-americana Alice Neel (1900–1984) demonstra como a tuberculose se manifesta sobre os pobres e os que mais sofrem. O retratado, conforme explicação do NMWA, é Carlos Negrón, de 24 anos, irmão do então namorado da artista. Havia dois anos que ele tinha se mudado de Porto Rico para o Spanish Harlem, em Nova York, comunidade pela qual a doença se multiplicava devido à aglomeração de pessoas. Traduzo a resenha do museu:
Apesar de estimular a empatia, a pintura de Neel não é sentimental. Enquanto mantém a aparência de Negrón, Neel distorceu e alongou seus braços e o pescoço. Ele usou linhas pesadas e escuras para enfatizar e achatar sua silhueta. […] A face de Negrón expressa dignidade no sofrimento, enquanto sua pose e o gesto de sua mão direita lembram imagens tradicionais do Cristo martirizado.
Nessa analogia com Jesus dos protagonistas das duas obras, poderíamos intercambiar nomes. Um veio do Norte para Santos, outro de Porto Rico para Nova York, ambos em busca de uma vida melhor. Um é José, o outro Carlos, um Severino, o outro Negrón, e o mesmo destino.
Sobre o podcast
Trechos do romance Navios Iluminados (1937), de Ranulfo Prata, selecionados e narrados por Alessandro Atanes para a 10ª edição do Festival Tarrafa Literária, realizada em setembro de 2018 em Santos, em memória do autor.
O livro é o tema de minha dissertação de mestrado História e Literatura no Porto de Santos: o romance de identidade portuária “Navios Iluminados” (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2008).
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