Trechos do romance Navios Iluminados (1937), de Ranulfo Prata, selecionados e narrados por Alessandro Atanes para a 10ª edição do Festival Tarrafa Literária, realizada em setembro de 2018 em Santos, em memória do autor.
O livro é o tema de minha dissertação de mestrado História e Literatura no Porto de Santos: o romance de identidade portuária “Navios Iluminados” (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2008).
Karl Marx cita o Hades da mitologia grega, onde a psique, a alma, vaga sem sopro, despida do conhecimento pela atuação da maquinofatura, o processo de sequestro do conhecimento do trabalho pela máquina. No romance de Ranulfo Prata, é o que ocorre na cena da mecanização, que abre o capítulo XII:
O [guindaste] “palmeira” botou toda a sua eletricidade, esticou o cabo possante e levantou a grab que lá se foi pelos ares, como uma aranha descomunal, em procura do porão do cargueiro inglês Amberton, que trazia carvão de Cardiff.
O barco vinha de barriga cheia, a ímpar, a carga beijando a boca da escotilha. A máquina escancarou as mandíbulas medonhas, enterrou os dentes na massa negra e derramou na galera três toneladas de carvão de uma só vez. Chegara recentemente e eram as primeiras experiências que se faziam. O pessoal da turma 65 espiava, curioso, o manejo da bicha. E ante os seus olhos surpresos, o porão foi se esvaziando rapidamente. O demônio da máquina, sozinha, fazia o serviço de muitos homens, que ali estavam a olhá-la de braços cruzados e faces apalermadas.
Como tudo corria bem, indo a experiência além da expectativa, [o feitor] Malhado veio despedir os trabalhadores. Podiam ir, serviço só na manhã seguinte. Que ficassem satisfeitos com o meio-dia. Os homens, porém, não se conformaram, nascendo entre eles um zunzum de abelhas irritadas, que foi aumentando com rapidez, até se transformar num protesto firma e peremptório.
— Fora com a máquina, fora! Não pode, não pode! — gritavam.
Turmas de outros armazéns, largando o trabalho, correram para o 23, atraídas pelo tumulto que crescia cada vez mais. O guindaste parou e a grab ficou largada no chão do cais, inerte, como um dragão morto.
Seriam essas expressões da passagem acima — “mandíbulas medonhas”, ‘bicha”, “demônio da máquina”, “dragão morto” — metáforas animalescas para esse processo de maquinofatura? Elas expressam o horror da substituição do trabalho humano. Apesar de a cena terminar com a grab sendo inutilizada, o mecanismo com o tempo acaba adotado ao longo do cais.
Nessa releitura da obra de Ranulfo Prata, fica patente como a força animal é a metáfora principal para o trabalho, tanto dos homens como das máquinas.
A imagem de fundo do episódio é um detalhe da capa do Esquinas do Mundo: Ensaios sobre História e Literatura a partir do Porto de Santos (2013), em que avanço as pesquisas do mestrado. O autor da capa, Raphael Morone, num diálogo de ecos com a analogia de Marx, concebeu uma grab descendo sobre o espaço, prestes a engolir o sol — a vida — no horizonte.
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