Ouvimos no episódio anterior — Cena 8 - A Turberculose — como o protagonista de Navios Iluminados, José Severino de Jesus, sofre os primeiros sinais de tuberculose. Após uma série de consultas no ambulatório, o médico lhe concede três meses de licença. Para o Doutor Custódio, superintendente do escritório da Companhia Docas de Santos, a culpa era do próprio trabalhador: “Com certeza é o resultado da safadeza, das noites de botequins e mulheres”. Após o período, recebe nova licença de três meses, desta vez com metade dos vencimentos e, após esse afastamento, decide voltar ao trabalho mesmo sem recomendação médica.
Não aguenta dois meses “curvado sob as cargas e descargas”. Envergonhado, com culpa de não ter ouvido o médico, o doutor Miranda, Severino volta ao ambulatório e recebe uma bronca do especialista e um novo pedido de licença que leva ao superintendente. Este, por sua vez, para não cortar de vez os vencimentos do estivador, concede-lhe um serviço de ajudante geral no armazém 12.
Mas nem disso dá conta, e acaba descartado:
— O senhor está muito doente, precisa descansar. Se fosse efetivo, podia ser aposentado. Com menos de cinco anos não se tem direito. Mas não fique triste, vou arranjar-lhe um dinheirinho. A Caixa devolverá as contribuições feitas durante os anos em que trabalhou. E também a Companhia dará alguma coisa. Com esse dinheiro, porque não volta para o Norte? Guardarei o seu lugar, se ficar bem.
A imagem do episódio
Detalhe da capa de A carga e a culpa. Os operários das docas de Santos: direitos e cultura de solidariedade, 1937-1968 (1995), de Fernando Teixeira da Silva. O livro é fruto da dissertação da mestrado em História do autor e trata das estratégias de solidariedade dos trabalhadores do Porto de Santos ao longo do século XX, desde um histórico anterior às leis de proteção do trabalho da década de 1930 até o AI-5.
Em resenha de 2022 sobre o livro, o então doutorando em História Social da Unicamp Alexandre Fortes analisa que o estudo de Fernando Teixeira da Silva revela como o sindicalismo portuário promove uma “civilização do capital”, com base em uma cultura urbana comum e na interdependência que o próprio processo de trabalho gerava no interior da “babel” de categorias e situações contratuais diferenciadas que caracteriza os portos.
A solidariedade, valor-chave para a constituição deste movimento seria reforçada no seio dos doqueiros pelas características do sistema de cooperação simples em que os “ternos” de operários desempenhavam suas tarefas e no desenvolvimento de estratégias de resistência à repressão e ao controle da companhia, expressos na pedagogia autoritária que marcava a conduta dos encarregados sintomaticamente denominados feitores.
A carga e a culpa, que tem uma capa interna azul e em negativo, pode ser adquirido no Sebo Augusto.
Estante
Fernando Teixeira da Silva. A carga e a culpa. Os operários das docas de Santos: direitos e cultura de solidariedade, 1937-1968. São Paulo, Hucitec, 1995.
Sobre o podcast
Trechos do romance Navios Iluminados (1937), de Ranulfo Prata, selecionados e narrados por Alessandro Atanes para a 10ª edição do Festival Tarrafa Literária, realizada em setembro de 2018 em Santos, em memória do autor.
O livro é o tema de minha dissertação de mestrado História e Literatura no Porto de Santos: o romance de identidade portuária “Navios Iluminados” (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2008).
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