Desver a tragédia
Talvez do sofrimento possamos extrair um pouco de significado; da experiência, o relato, a reflexão e a compaixão
Em certo sentido, sem dúvida, todas as tragédias são específicas: há tragédias de povos e gêneros específicos. Há a destruição dos tecelões ingleses, a longa degradação do escravagismo afro-americano, as indignidades do dia a dia cometidas contra as mulheres, para não falarmos daquelas calamidades dissimuladas de vidas individuais obscuras, que carecem até mesmo da dignidade de um título político coletivo. E nenhuma dessas experiências é abstratamente permutável com as outras. Elas não compartilham de qualquer essência, exceto no aspecto do sofrimento; mas o sofrimento é uma linguagem extremamente poderosa para se compartilhar, uma linguagem pela qual muitas diferentes formas de vida podem iniciar um diálogo. É o comunalismo de significados.
Terry Eagleton, Doce violência: a ideia do trágico
E agora?
No episódio 120 do podcast Desver — A catástrofe subjetiva: Como a tragédia nos impacta? — os titulares do programa, Gustavot Diaz e Giu Alles, conversam sobre o atendimento emergencial às vítimas do Rio Grande do Sul e, lá pelo minuto 34 Alles apresenta uma hipotética situação emergencial:
Imagina, acontece uma catástrofe e a gente olha para a sociedade e fala “e aí, como é que você pode ajudar”?
Um fala: — Sou bombeiro.
— Então vai lá.
— Eu tenho um barco, tenho um jet sky…
— Vamos lá.
Aí chega um cara, levanta a mão:
— Eu sou artista.
Aí todo mundo olha para a cara dele… e agora?
A situação, apresentada em formato de piada, põe em cheque a falta de serventia do artista em momentos de crise. Mas Aless, ao final do episódio, reverte a situação:
Esse artista pode levantar a mão com toda a dignidade, com a mesma dignidade do bombeiro, ou no mínimo com a mesma dignidade do psicólogo, sabe?, e falar:
— Cara, eu sou artista. Deixa comigo porque essas pessoas não vão ter palavras pra dizer o que tão sentindo e é isso o que eu sei fazer. É isso o que eu sei fazer. Eu sei trazer para o simbólico aquilo que tá marcado no real, o traumático, aquilo que não pode ser dito, aquilo que… onde a linguagem falha, onde a linguagem não dá conta. É aqui que eu entro como artista. Deixa pra mim, aqui o bombeiro não vai dar conta, não. Aqui o psicólogo também não vai saber o que fazer.
Elaboração
Em Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva, a ensaísta argentina Beatriz Sarlo escreve sobre experiência, testemunho e elaboração ficcional:
Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum.
Esse impulso de transformar experiência em relato, presente também na citação de Eagleton, foi um dos temas do episódio do Desver, principalmente na voz do Gustavot Diaz, exortando os ouvintes a falarem e conversarem com amigos, terapeutas e até mesmo desconhecidos sobre os acontecimentos.
O próprio Diaz pondera que a tragédia é o ano todo no país: “é um problema eterno, pessoas que toda a chuva perdem suas casas o tempo inteiro no Brasil”. Foi aí que lembrei de dois exemplos de como enchentes recentes na país receberam tratamento artístico, nessa tarefa de “trazer para o simbólico aquilo que tá marcado no real”.
Itajaí
Em Quando cai um rio do céu (Papa-Terra Editora, 2011), Daniel Rosa dos Santos reelabora as enchentes de Itajaí (SC) de 2008 e de 2011 em pequenos episódios que apontam para a sordidez e o egoísmo que surgem nessas situações, como em Engano:
Resgate o que, dona?! Isso é assalto mesmo, abre o cofre, passa as jóias e o dinheiro. Não dona, não tem como levar ninguém na canoa, nóis tá na corréra. A senhora fica aí que uma hora os bombero chega.
Ou Empreendedor:
Pegou de dúzia os sacolões e sacos cheios de roupa, mas não conseguiu montar o brechó nem o mercadinho porque o terreno desceu com a casa ladeira abaixo. Foi preso quando passava a mercadoria adiante.
Cubatão
Em La Tendresse é uma ilusão ou Bela Tarr (2017), livro-diálogo entre o poeta Marcelo Ariel e o artista plástico Fabrício Lopez, o poema é disposto em uma única linha, um fio condutor — uma linha de Ariadne — entre as páginas tomadas por serigrafias mais ou menos abstratas sobre as enchentes que afetaram Cubatão em 2013.
Apesar da disposição em linha, os versos são separados por barras, o que permite a reprodução abaixo desse trecho que ecoa Eagleton:
Quinto movimento
Sim, a geladeira foi convertida em barco
Ninguém falou nada aos cães e gatos afogados
Aquele menino no abrigo tem o olhar de um cavalo
Um homem procurava na lama por um envelope com todo o seu dinheiro, como um garimpeiro
Na conclusão do livro citado acima, Beatriz Sarlo faz uma ponderação que tem guiado minhas pesquisas desde 2007, quando foi publicado no Brasil, e que não me canso de repetir:
A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.
Pós escrito
Gustavot Diaz, artista visual, escritor e professor, criou em seu site a Campanha [monotipias da enchente], criada para auxiliar artistas vitimados pela tragédia gaúcha com obras feitas com a interferência da água ao longo das composições. Conforme anunciado em sua página, 80% da arrecadação serão doados a artistas que sofreram perdas materiais por causa das chuvas. A imagem que acompanha a primeira página da newsletter, Lama na alma, também faz parte da campanha. Confira em https://gustavotdiaz.com.br/.
O podcast Desver conheci há pouquíssimo tempo, menos de um mês, e estava ouvindo o episódio #119 Apaixonamento como tema maior das artes quando surgiu a notificação da nova conversa.
Estante
Marcelo Ariel e Fabrício Lopez. La Tendresse é uma ilusão ou Bela Tarr. São Paulo: Estúdio Elástico, 2017.
Daniel Rosa dos Santos. Quando cai um rio do céu. Navegantes: Papa-Terra Editora, 2011.
Beatriz Sarlo. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo; Belo Horizonte: Companhia das Letras; UFMG, 2007.
Terry Eagleton. Doce violência: a ideia do trágico. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
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