Uma noite de fogo e morte: representações artísticas do incêndio de Vila Socó
A denúncia da tragédia em Gilberto Mendes, Cícero Gilmar Lopes, Paulo de Toledo e Marcelo Ariel
Somam-se os assombros,
mas o homem ensombra o próprio assombro.
Ode ao homem, Sófocles
A referência tripla ao assombro neste trecho de Antígone, de Sófocles, na tradução de Trajano Vieira, abre o segundo canto coral da tragédia, que acabou por receber o título de Ode ao homem (na introdução ele explica porque não traduziu o nome da protagonista para Antígona com “a”). Nada mais propício para essa coletânea de representações artísticas sobre o incêndio de Vila Socó, que fulminou na noite de 24 de fevereiro de 1984 famílias inteiras que viviam sobre oleodutos na cidade industrial de Cubatão.
Não se sabe exatamente o número final de mortos. A estatística oficial enumera 93 pessoas, porém relatos e projeções elevam a conta para a casa das centenas. Pior, dizem ser impossível saber exatamente porque famílias inteiras morreram sem que ninguém restasse para reclamar seus mortos.
Os que morreram não nos deixaram relatos, nunca os conheceremos, não poderemos fazer filmes deles baseados em fatos reais. Nessas horas, mais do que exatidão, precisamos da poesia e da arte para cantá-los.
A ficção costuma atingir locais da compreensão humana que a mais contundente das evidências não alcança. Lógico que isso não resolve as coisas simplesmente, mas nos permite um mundo de compreensão e não apenas de experiência, frase em que reformulo uma importante lição da ensaísta argentina Beatriz Sarlo:
A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.
Beatriz Sarlo
Iniciemos então nosso catálogo de obras sobre Vila Socó:
O assombro da Ode ao homem torna-se o horror no poema de Paulo de Toledo. O autor traz para a Baixada Santista, em repetição visual, o mote de O coração das trevas (1899), de Joseph Conrad — o horror, o horror —, em que o autor polonês de expressão inglesa descreve a brutalidade europeia sobre a população do Congo. Do Congo à Vila Socó, passando pelo navio negreiro, outro poema visual do autor desvela sobre quem cai as cores do horror:
Poema que sempre retomo por sua força e visualidade é Caranguejos aplaudem Nagasaki, de Marcelo Ariel, do livro Tratado dos anjos afogados (2008), no qual um dos pontos de vista é de dentro do próprio incêndio:
CARANGUEJOS APLAUDEM NAGASAKI
para Gilberto Mendes & Mano Brown
(Vila Socó)
Corpos em chamas se atiram na lama
mulheres e crianças primeiro
caranguejos aplaudem Nagasaki
bebê de oito meses é defumado
enquanto Beatriz
agora entende o poema derradeiro
Beatriz mãe solteira antes de morrer deu um inútil pontapé na porta
No ar
gritos mudos
a noite branca da fumaça envolve tudo
alguém no bar da esquina
pensa em Hiroxima
nas vozes
horror e curiosidade acordaram a cidade
se misturando
dentro do inferno olhos clamam
por telefone
o ministro é informado
– O fogo os consome...
A sirene das fábricas não
silencia
Dois serafins passando pelo local
sussurram no ouvido
do Criador
“Vila Socó: meu amor”
Uma velha permaneceu deitada
em volta da cabeça na auréola
o último pensamento passa
o coro das sirenes
no meio do breu iluminado
uma garça voa assustada
com os humanos e seu inferno criado
no mangue o vento move as folhas
Um bombeiro grita:
– KSL! O fogo está contra o vento! Câmbio...
Foi Deus quem quis
diz o mendigo
que sobreviveu porque estava dormindo no bueiro da avenida.
Um orgasmo é cortado ao meio
quando o casal percebe o fogo
queimando o espelho.
Voltando no tempo
lamentamos
o movimento do gás
levíssimo iceberg
que converteu fogo em fogo, horror em horror
Vila Socó
estacionou na História
ao lado de Pompéia, Joelma e Andrea Doria
Pensando nisso
ergo neste poema um memorial
para nós mesmos
vítimas vivas
do tempo
onde se movimenta a morte se espalhando na paisagem
como o gás
que também incendeia o sol
(bomba de extensão infinita)
Beatriz sentou perto da porta e ficou olhando o fogo.
Até que invade a cena a luz suave de um outro sol frio
Fim de jogo.
(O que não queima)
Beatriz agora é outra coisa e contempla:
raios negros num céu negro
depois brancos num céu branco
suavemente penetrei num jardim
onde uma única árvore existe.
(O incêndio acaba e a garça pousa no mangue, onde os anjos sonham)
Naquela noite um acordou
andou no meio das chamas
e as chamas
o queimaram.
Como escrevi no ensaio A Tragédia de Vila Socó na obra de Marcelo Ariel, o poema traça uma relação entre o incêndio e outros desastres ou figuras como Pompeia ou o inferno da Divina Comédia, de Dante Alighieri, obra que definiu a imagem do inferno para o mundo ocidental. Nesse inferno da fase barroca do capitalismo que é Vila Socó, Beatriz, símbolo do amor divino e da religiosidade na obra-prima do autor italiano, é transformada em adolescente mãe solteira favelada (“Beatriz é agora outra coisa”).
O versos de Ariel sabem-se poesia e abrem mão da função informativa ou educativa que decerto os diminuiria. Essa é a razão de portarem uma carga ética não alcançada por nenhum tratado sociológico, histórico ou matéria jornalística, a que cabe a contabilidade “dantesca” do número de mortos ou feridos. O poema não denuncia, leva-nos diretamente para dentro do episódio por meio de sua capacidade imagética, fazendo Vila Socó “estacionar” na História.
Outro canto em homenagem às vítimas é Vila Socó, meu amor, do compositor Gilberto Mendes, uma das poucas peças de sua autoria para as quais ele mesmo escreveu a letra:
Vila Socó, meu amor
Não devemos esquecer os nossos irmãos da Vila Socó,
transformados em cinzas, lixo em pó.
A tragédia da Vila Socó mostra como o trabalhador é explorado,
esmagado sem nenhum dó.
Assombrados
A tripla repetição do arquétipo das sombras com que Trajano Vieira traduz o canto coral de Antígone Cícero Gilmar Lopes repete na abertura de seu romance Assombrados (2016), quase um conjuro:
Teve uma vez em Assombrados que...
Assombrados, os compadres conhecem, né? Por essas caras de Amazônia morta, já vi que não conhecem? Assombrados é uma cidade do Brasil, que os compadres e comadres não encontrarão na relação dos cinco mil e tantos municípios que este país soma.
Cícero vive e mora em Cubatão, mas não é necessário reconhecer em sua obra a cidade específica, mas a fábula do desenvolvimento industrial brasileiro, uma fábula pelo avesso do qual o conjuro faz as vezes de “era uma vez”.
Tive a honra de escrever o prefácio para o livro, era finzinho de 2015 e a lama da Vale/BHP/Samarco chegava às praias do Espírito Santo. No livro, a filha da tragédia industrial é Desmiolada, a personagem muda que atira bombas. Sua mudez (sem cérebro, logo sem fala) é a da revolta, a da vingança: “as bombas de Desmiolada são o coro de nossos tempos”, escrevi ali.
Epílogo
No mesmo ano do incêndio, tragédia, crime de Vila Socó, o historiador Nicolau Sevcenko publica seu estudo A revolta da vacina. Na introdução, ele dedica o livro aos “mártires involuntários da favela de Vila Socó” e aponta para os morticínios do capitalismo. Pouco conheci o professor, tive um semestre de aulas com ele, mas creio que a citação abaixo vale para Vila Socó, vale para Gaza, vale para as operações policiais na Baixada Santista:
A matança coletiva dirige-se, via de regra, contra um objeto unificado por algum padrão abstrato que retira a humanidade das vítimas: uma seita, uma comunidade peculiar, uma facção política, uma cultura, uma etnia. Personificando nesse grupo assim circunscrito todo o mal e toda a ameaça à ordem das coisas, os executores se representam a si mesmos como heróis redentores, cuja energia implacável esconjura a ameaça que pesa sobre o mundo. O preço a ser pago pela sua bravura é o peso do seu predomínio. A cor dos heróis é a mais variada, só o tom do sangue de suas vítimas permanece o mesmo ao longo da história.
Nicolau Sevcenko, “A revolta da vacina”
Alessandro, publiquei em um jornal de Cubatão um poema longo sobre o assunto, O canto do socó, que está em meu livro Antologia Impessoal. Abraço