Tradução: uma resenha de Jorge Luis Borges sobre Rui Ribeiro Couto
Em dezembro de 1933, o autor argentino escreveu sobre o lançamento de "Noroeste e outros poemas do Brasil" na revista Multicolor, publicada em Buenos Aires
Participei no sábado passado (28 de outubro) do encontro Borges & Cortázar, clássicos da literatura argentina, com o professor Sérgio Montero, que organizamos lá na
. Além da bela conversa sobre a poética dos dois autores, acabo sabendo que Jorge Luis Borges, em uma de suas inumeráveis contribuições para a imprensa de Buenos Aires, publicou em 1933 uma resenha sobre Noroeste e Outros Poemas do Brasil, de Rui Ribeiro Couto, lançado naquele ano.O texto foi publicado no número 21 da revista Multicolor de los Sábados, editada entre 1933 e 1934, e dirigida por Borges e Ulyses Petit de Murat. Os textos de Borges na revista foram reunidos em livro por Irma Zangara em Borges en Revista Multicolor: Obras, Resenas y Traducciones Ineditas, publicado em 1995 em Buenos Aires pela editora Atlántida, do qual Montero tem um exemplar.
Apesar da brevidade, a resenha não escapa ao espírito de Borges. Logo nas primeiras linhas, ele inverte aquela percepção que se mantém até os dias de hoje de que nós na América não nos conhecemos muito bem. Ele afirma (“penso estritamente o contrário”) que, apesar da variada cor local, já nos parecemos e, assim, buscar leituras somente pelo pertencimento ao continente seria ingênuo e inútil, um “comércio em que todos perdem”.
A maior parte do texto é dedicada a essas reflexões e, quando chega ao poeta santista (ah, a cor local, Borges acaba com toda minha pesquisa…), logicamente, reconhece um semelhante pelo qual reafirma “a indolente convicção — tal vez equivocada, mas não ilógica — de que pessoas parecidas comigo ou com os amigos que frequento, e providas de uma biblioteca não muito diferente, a elas não posso me deparar com vastos assombros”.
E reconhece em Ribeiro Couto a grande influência que é também sua, a leitura do norte-americano Walt Whitman. Nesta cadeia de influências, lembro aqui do elogio a Borges feito por Roberto Bolaño, El bibliotecário valente, no qual o chileno afirma que a leitura de Whitman por Borges talvez seja a “única que ainda se mantém em pé”. O nº 21 da revista traz textos também de Chesterton, Ernest Hemingway e Marcel Schowb.
Abaixo, a resenha de Borges, pela primeira vez em português:
Noroeste e Outros Poemas do Brasil
Jorge Luis Borges
Tradução Alessandro Atanes
É opinião geral (ou queixume mecânico geral) que os homens das diversas Américas não nos conhecemos muito. Se omitimos dessas Américas a do Norte (que pode nos ensinar muito ou tudo ainda, tanto pelos erros como pelos acertos), penso estritamente o contrário.
Penso que infinitamente nos parecemos, com escassas e míseras variantes de cor local, e que um conhecimento intensivo seria como esses trabalhosos velórios que nos inferem o incômodo trato de aziagos primos derrotados pela urticária ou de pálidas tias que vivem à espera do escorbuto.
Quando um mulato açucarado me jura que tal ou qual renomado guatemalteco “quer muito aos argentinos” e dedica vigílias apaixonadas a examinar os livros de Manuel Gálvez ou de J. L. Borges, minha justa indignação ignora os limites, e declaro: a), que está desperdiçando a vida, — b), que se trata de um ingênuo político que lê para que seja lido, e c), que os infernos do Pen-Club serão dele. Alguém observará que minha ignorância da literatura argentina é (ainda que considerável) imperfeita, mas eu lhe respondo que o que em mim é um mal necessário, corre o risco de parecer uma aberração em pessoa engendrada em Guaiaquil. Trocar Sarmientos por Montalvos, permutar polcas paraguaias por falsos tangos boquenses, remeter um José Gervasio Artigas e receber um Emiliano Zapata de volta do correio, que atontado e prodigioso comércio, no qual todos perdem!
Não sei se desprende-se do anterior que meu desconhecimento da lírica do Brasil não se envergonha muito de ser total. Não se veja nisso um desdém: veja a indolente convicção — tal vez equivocada, mas não ilógica — de que pessoas parecidas comigo ou com os amigos que frequento, e providas de uma biblioteca não muito diferente, a elas não posso me deparar com vastos assombros.
Não sei se as influências que percebo em Ribeiro Couto são de primeira mão ou de undécima. Uma é contínua e evidente: a de Walt Whitman. Linhas como estas (que copio em espanhol para que as erratas vorazes não as desgastem):
Oh, raza insatisfecha de fronteras.
Raza tosca, enérgica, decisiva.
y como estas otras:
En mi sangre, confusamente, se agitan voces.
Tengo el impulso de gritar a la tierra que duerme.
derivam notoriamente de Leaves of grass — 1885!! — e ainda do mais comunicativo e menos interno do glorioso folheto. Uma influência ocasional é a de Carl Sandburg. A exaltação de San [tos, ilegível no original, mas é em Santos que sopra o vento Noroeste que dá título ao livro] é um fac-símile indolente e caseiro, mas reconhecível, do poema Chicago, tão frequentado pelas antologias. O terceiro verso, por exemplo, é quase uma tradução: o que é menos importante que a identidade perfeita de tom, de aparato sintático.
O anterior não é obrigatoriamente uma reprovação. O verso livre, as enumerações entusiasmadas, o patetismo dos nomes geográficos, foram inventados ou placidamente organizados por Whitman para sua versão fervente de América: não sei por qual motivo não haverão de servir para uma comunicação do Brasil.
Copio, com o risco de erratas, este fragmento que não deixa de parecer-me comovedor, sobretudo pelos dois versos finais, que derivam o patético de um país, do fato de que nenhum varão, ainda, nasceu nele:
Esta humanidade virgem, sem antepassados locais!
Esta certeza de fundar a vida ambiente,
A alegría de construir a casa inicial.
Chegar um dia com os camaradas,
Derrubar os troncos para os esteios,
Cortar o sapé para a coberta,
Cavar o poco junto da porta
E fazer o primeiro fogo do lar.
Depois, na noite do sertão rude,
Dormir no currau cheiroso
Sonhando com as rocas futuras em flor.
Nenhum homem feito, ó Noroeste,
Pudesse dizer-te: minha terra natal.
Copio também esta bondosa irrisão. (O tema é o Rio de Janeiro, — poderia ser, com alguma variação nos nomes e nos temas da vaidade, Buenos Aires.)
No rumor constante da via tumultuária
As multidões infatigáveis de funcionários públicos
Circulam entre os palácios democráticos
E no peito de todos um confuso entusiasmo de felicidade
Vibra tão forte como a luz.
O Brasil é o maior país do mundo.
A baía do Guanabara é a baía mais bela do mundo.
O povo brasileiro é o povo mais inteligente do mundo.
Comentadores de Rui Ribeiro Couto
Essa resenha de Borges bem que poderia ter feito parte do livro Ribeiro Couto: 30 anos de saudade, coordenado por Vasco Mariz e organizado por Milton Teixeira, que reúne 30 textos sobre o autor, entre resenhas, críticas, perfis e comentários, de nomes como Manuel Bandeira, Mario de Andrade, Paulo Ronai, Josué Montello, Carlos Drummond de Andrade, Barbosa Lima Sobrinho, José Lins do Rego, Tristão de Ataíde, Wilson Martins e Ledo Ivo.
Estante
MARIZ, Vasco & Teixeira, Milton. Ribeiro Couto: 30 anos de saudade. Santos: Editora da UNICEB, 1994.
Roberto Bolaño. Entre paréntesis. Ensayos, artículos y discursos. Edição de Ignacio Echevarría. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2004.
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