O Museu das Antas Mortas ou o perigo das homenagens
A morte do marxista norte-americano Fredric Jameson e uma crítica a ele escrita por Aijaz Ahmad, um marxista do Terceiro Mundo
Num dos perfis de Homens em Tempos Sombrios, Hannah Arendt conta sua indisposição e constrangimento ao receber o anúncio de uma homenagem. Considera recebê-la ou não como lados opostos da mesma moeda egocêntrica. Acaba por aceitá-la — parafraseio — como uma oportunidade de reforçar seu compromisso com o mundo.
Os mortos, por sua vez, não têm como se defender das homenagens. À direita, acabam louvados pelos serviços prestados à manutenção da ordem ou domesticados dos “excessos” reduzidos a arroubos de juventude ou excentricidade. À esquerda, tornam-se mártires, suas trajetórias são santificadas e seus pensamentos enrijecidos em palavras de ordem que servem como guia para a excomunhão de hereges.
Nos dois casos, vivo ou morto, é grande a chance do homenageado acabar no Museu das Antas Mortas (um outro tipo de MAM), fedendo “a cadáver adiado”, expressões que ouvi de um dos integrantes do podcast Enterrados no Jardim.
Comecei a escrever este texto lá no início de outubro, quando a programação televisiva lamentava o fim do “boa noite” de Cid Moreira. Mas a morte da voz mais representativa da televisão brasileira havia sido só um acidente frente à que me fez escrever, a morte de Fredric Jameson, intelectual norte-americano, em 22 de setembro aos 90 anos. Jameson é o autor daquela blague que vem nos assustando nos últimos anos: a de que é mais fácil imaginar uma catástrofe total na Terra do que o fim do capitalismo.
Ele é também autor do clássico Pós-Modernismo — A Lógica Cultural Do Capitalismo Tardio (1989), “referência incontornável nos cursos universitários” conforme Guilherme Wisnik, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo em sua coluna na Rádio USP, Espaço em Obra.
No A Terra é Redonda, leio homenagem do crítico literário Terry Eagleton em tradução de Artur Renzo para o original publicado no blog da editora Verso, na qual coloca o amigo como farol para o pensamento crítico:
Críticos literários não têm muita função social hoje em dia. Parte do feito de Fredric Jameson foi ter mostrado para o resto de nós como tais modestas figuras acadêmicas podem novamente se tornar intelectuais públicos, homens e mulheres cuja influência se espraia para muito além dos limites convencionais dos estudos literários. É isso que a palavra amorfa “teoria” passou a significar, e Fredric Jameson foi o mais fino teórico de todos.
Terry Egleaton, crítico literário inglês
Em sua newsletter, o filósofo Slavoj Žižek homegeia o pensador brincando com a piada: “É mais fácil imaginar o fim do capitalismo do que a morte de Jameson”. De seu texto, Maior que a vida, destaco essa parte inicial na tradução de Rodrigo Gonsalves para o LavraPalavra:
Ele foi o marxista ocidental definitivo, alcançando destemidamente os opostos que definem nosso espaço ideológico – um “eurocentrista” cujo trabalho encontrou grande eco no Japão e na China, um comunista que amava Hollywood, especialmente Hitchcock, e romances policiais, especialmente Chandler, um amante da música imerso em Wagner, Bruckner e música pop… Não há absolutamente nenhum traço de Cancel Culture com seu moralismo rígido e falso em seu trabalho e vida – pode-se argumentar que ele foi a última figura renascentista.
Slavoj Žižek, filósofo esloveno
Um lapso de Jameson
Estamos no final de novembro e já não se fala mais em Jameson, outros textos e obrigações da vida tomaram a frente deste ensaio e hoje nem se completa uma data redonda de sua morte (dois meses, por exemplo), mas nunca me dei bem com datas e efemérides e creio que ele já não se importa. Volto então ao que me motivou a este texto, a primeira coisa que me veio à cabeça quando soube de sua morte: um puxão de orelha acadêmico que Jameson sofreu de Aijaz Ahmad.
Tanto Eagleton — de quem adoro o Doce violência: A ideia do trágico — quanto Žižek, autores das homenagens citadas acima, são marxistas como o homenageado. Eagleton, inglês de ascendência irlandesa, é de uma parte do planeta que até o colapso soviético em 1991 chama-se Primeiro Mundo, formado pelos países do imperialismo capitalista. Žižek, esloveno, nasceu quando seu país formava a antiga Iugoslávia, então parte do Segundo Mundo, comunista.
O indiano Aijaz Ahmad, morto em 2022, também marxista, é da outra ponto do triângulo, o Terceiro Mundo. Ele é o autor de A retórica da alteridade de Jameson e a “alegoria nacional”, ensaio de 1992 (publicado em inglês também pela Verso) em que está o puxão de orelha.
O texto saiu no Brasil em 2002 em seu único livro publicado por aqui, Linhagens do presente. Ali, Ahmad faz um contraponto a um texto de Jameson de 1986, Third World Literature in the Era of Multinational Capital (Literatura do Terceiro Mundo na Era do Capital Multinacional).
Primeiro, o trecho do texto do norte-americano que causou a reação do indiano:
Todos os textos do Terceiro Mundo são necessariamente, quero argumentar, alegóricos, e de uma maneira muito específica; devem ser lidos como o que vou chamar de alegorias nacionais, mesmo quando, ou talvez eu devesse dizer particularmente quando suas formas de desenvolvem a partir de maquinarias de representação predominantemente ocidentais, tais como o romance.
Logo na abertura de seu ensaio, Ahmad, também poeta, descreve o desconforto ao ter se deparado com essa sentença, ainda mais por ter vindo de outro marxista (“pássaro de mesma plumagem”) de quem lia a obra há mais de 15 anos:
Bem, nasci na Índia e escrevo poesia em urdu, uma língua não comumente compreendida entre os intelectuais norte-americanos. Então, disse para mim mesmo: “Todos?… necessariamente?” Parecia estranho. Entretanto, as coisas ficaram muito mais curiosas. Pois, quanto mais lia, mais percebia, bastante mortificado, que o homem a quem tinha por tanto tempo, tão afetivamente, ainda que de uma distância física, como companheiro era, em sua própria opinião, meu Outro civilizacional. Não foi uma sensação boa.
A partir daí, o indiano elenca uma espiral de críticas, geopolíticas, ideológicas — que talvez possam se resumir na variedade da organização política dos países do terceiro mundo e no destaque a que os países do Primeiro Mundo apresentam uma “homogeneidade cultural” causada pela imediata circulação de bens e produtos culturais muito maior que poderia-se perceber entre países da Ásia, África e América do Sul.
Queria destacar a dimensão estética dessa crítica, isto é, como a própria produção literária contradiz a afirmação de Jameson. Entre citações a latino-americanos e outras obras, destaco um pequeno trecho da longa explanação que Ahmad faz da literatura em urdu, cujo início ele localiza no século XIII:
O que é notável a respeito de todas as principais narrativas em prosa urdu escritas durante o meio século em que os britânicos completaram sua conquista da Índia [segunda metade do século XIX] é que não há nada em seus conteúdos, seu modo de ver o mundo, que possa ser razoavelmente vinculado à investida colonial ou com qualquer senso de resistência a ela […]. É como se o estabelecimento de prelos e o crescimento de um público leitor de narrativas em prosa dessem origem a um tipo de escrita cuja única tarefa era preservar em livros pelo menos parte daquela cultura persianizada e daquelas tradições de oralidade que estavam rapidamente desaparecendo. É só nesse sentido negativo que se poderia, esticando bastante os termos, declarar esta como sendo uma literatura da “alegoria nacional”.
Ao que mais à frente complementa:
Desse modo, não temos certeza se estamos lidando com uma falácia (“todos os textos do Terceiro Mundo” são isso ou aquilo) ou com a Lei do Pai (você deve escrever isso se quiser ser admitido na minha teoria).
Ahmad também implica com a imobilidade das categorias Primeiro, Segundo e Terceiro mundos que o advérbio “necessariamente” implica, pois mais do que naturezas distintas, o que ocorre é a inserção da modernidade capitalista em todos os espaços do planeta e a resistência e as formas de luta contra essa dinâmica também em todos os cantos do mundo.
Conflito que Julio Cortázar nos exemplifica em Vuelta al día en el tercer mundo, texto em que ele comenta o informe de 1967 do norte-americano William Pepper sobre o drama da infância no Vietnã.
Duzentos e cinquenta mil crianças mortas no Vietnã desde 1961, vítimas da guerra. Mais de setecentos e cinquenta mil feridos, mutilados e queimados com napalm. Milhares e milhares de crianças morrem de desnutrição e de doenças infecciosas em hospitais lotados e carentes do material necessário. Mais de dez mil crianças amontoadas em orfanatos, privadas do indispensável. Milhares de crianças sucumbem em campos de refugiados, dizimados pela tuberculose e pelo tifo. E milhares de crianças abandonadas vagabundeiam pelas cidades, obrigadas à mendicância.
Em seguida, Cortázar comenta o caso se crianças sequestradas e escravizadas na Venezuela. Novamente, África, Ásia, América Latina... triste, mas como espaços em que se dá a luta, não espaços imobilizados.
Encerro com o próprio Ahmad:
O de Jameson não é um texto do Primeiro Mundo. O meu não é um texto do Terceiro Mundo. Não somos os Outros civilizacionais um do outro.
Estante
Aijaj Ahmad. A retórica da alteridade de Jameson e a “alegoria nacional”. In: Linhagens do presente. Organização Maria Elisa Cevasco. Tradução Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
Julio Cortázar. La vuelta al día en ochenta mundos. Buenos Aires, Siglo Veintiuno Editores, 1968.