Animais poéticos e a ursa de Giovanna Rivero
Notas do Atanes no Jornal da Orla, 29 de maio
Mais uma colaboração para o Jornal da Orla.
√ Torna-se cada vez mais comum entre antropólogos e historiadores a constatação de que o Iluminismo tem como uma de suas bases a crítica dos povos indígenas à colonização europeia.
√ Sim, é isso mesmo. Locke e Voltaire, por exemplo, nunca deixaram de citar os relatos de viajantes e jesuítas que contaram seus contatos com nações indígenas em torno dos Grandes Lagos da América do Norte como matéria-prima filosófica.
√ Veja só Kondiaronk, estrategista e diplomata da Confederação Wendat, coalizão de quatro povos de língua iroquesa. No final do século XVII, Lahontan, um aristocrata francês, é enviado à região e inicia uma série de conversas mantidas com o líder indígena em Michilimacknic.
√ O francês registrou os encontros e os compilou em livro em 1703 em forma de diálogo no qual podemos ler as respostas de Kondiaronk às tentativas do francês de afirmar a superioridade europeia.
√ “Da minha parte, acho difícil considerar que vocês poderiam ser muito mais infelizes do que já são. Que tipo de ser humano, que espécie de criatura devem ser os europeus, para precisar ser forçados a fazer o bem e só se abstêm do mal por medo do castigo?”
√ O medo ocidental da voz originária fez com que o governo do Canadá desde o final do século XIX até 1996 — anteontem — arrancasse mais de 150 mil crianças inuítes e métis de suas famílias para serem levadas a pensionatos (a maior parte religiosos) onde deviam adquirir os costumes e a língua do branco.
√ No conto Pele de Asno (2021), a escritora boliviana Giovanna Rivero nos apresenta Nadine Ayotchow, cantora da banda gospel do Templo Niágara, em Clarence, Estados Unidos. Rivero estrutura a história como um testemunho da protagonista à congregação.
√ E assim Nadine conta também ao leitor sua história: nascida na Bolívia, perde os pais em um acidente e muda-se para o Canadá no início da adolescência junto com o irmão mais velho. Quem fica responsável pelos irmãos é uma tia alcoólatra, Anita. Eles vivem em uma casa em ruínas em um “pequeno terreno fronteiriço com as reservas dos métis”, às bordas de Lake Alice.
√ Mas Rivero subverte o testemunho religioso. Apesar do acolhimento da comunidade, a cada passagem Nadine, já bem adulta, mostra-se cada vez menos cristã — métis por adoção, boliviana por nascimento. Fica claro que está na igreja por seu dom musical, sua voz, que ela solta pela primeira vez muitos anos antes em uma festa na reserva, após receber um chapéu feito de pele de asno.
√ “Então abri minha bocona e cantei como nunca havia cantado antes. Era uma canção gospel que eu tinha ouvido na radio, uma canção profunda, de poucas palavras, que acelerava meu coração. Foi a primeira canção gospel que cantei em minha vida”.
√ E o relato segue nessa cadência até a revelação final, em que Nadine se identifica de forma xamânica como a “ursa do gospel”.
√ Gosto de pensar este conto como uma vingança.
√ Li sobre Kondiaronk em O despertar de tudo. Uma nova história da humanidade (2021), de David Graeber e David Wengrow.
√ O episódio do sequestro das crianças li em Somos animais poéticos. A arte, os livros e a beleza em tempos de crise, de Michèle Petit (Editora 34, 2024).
√ O conto de Giovanna Rivera faz parte do livro Terra fresca da sua tumba, lançado no Brasil em 2022 pelas editoras Incompleta e Jandaíra.
a melhor vingança!